Esquecer, lembrar ou celebrar? O beco (sem saída?) da memória de 1964

Próximo dessa data que não passa despercebida na história brasileira, os 60 anos do golpe militar de 1964, uma pesquisa recentemente posta a público informa que a maior parte dos brasileiros acredita que a data deve ser esquecida. Isso demonstra um pouco como a sociedade brasileira lida com seus dramas e dores.

Parece que temos a tendência de imaginar que não falar de um problema faz com que ele automaticamente desapareça. O Brasil é, dentre as nações latino-americanas que passaram pelo pesadelo da ditadura na segunda metade do século XX a única que não teve ações de punição aos perpetradores dessas violações. Não houve investigações tão pouco punições até recentemente aos militares e civis que estiveram envolvidos com torturas e rompimento da ordem democrática nos idos de 1964 (e que mantiveram o estado de exceção por longos 21 anos).

Militar vigia movimentação de multidão. foto: Evandro Teixeira/IMS

Não falar do trauma é um problema que impede que ele seja superado. Isso é algo já estudado a exaustão na psicologia desde a virada do século 19 para o 20. No caso brasileiro não falar do regime de exceção que aconteceu entre 1964 e 1985 não permite que a própria sociedade possa curar suas feridas e impede as instituições de corrigir o seus atos e tentar reorganizar o seu olhar para a nova fase que o Brasil iniciou desde o fim (pactuado e num “congraçamento” imposto pelos donos do poder vigente).

Essa atitude é subordinada ao conceito de que o brasileiro seria uma espécie de “homem cordial” tão bem apresentada por Sérgio Buarque de Holanda. Essa cordialidade está associada forma como se lida com os desafios da sociedade, agindo de uma forma mais emotiva e interessada no seu próprio benefício imediato do que na validação de uma estrutura social mais ampla onde regramentos e vedações são a pauta para a vivência cotidiana.

O “estado de coisas” que desembocou na marcha militar entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro e o movimento de lideranças parlamentares que declararam a “cadeira do presidente vaga” mesmo com o mandatário legalmente eleito ainda no território nacional não começou naquele fatídico ano de 1964. Como um cultivar de longa duração, a tomada do poder pelas forças conservadoras (no sentido de manter o status quo dos donos históricos do poder econômico e de mando) inicia-se muito antes e de modos muito menos visíveis, com pregações em púlpitos, matérias em jornais e rádios, caravanas educativas de campanhas e organizações cívicas.

Publicação do IPES (Inst. de Pesquisa e Estudos Sociais). Instituição privada focada em formação de lideranças e propaganda anti-comunista

Essa ação possibilitou que o olhar conservador para o mundo (e reforçando: conservador não pelo lado da cultura e tradição, mas pela manutenção do poder nas mãos de grupos muito específicos, que estão dispostos a qualquer coisa para não sair do seu “espaço de direito” político, de poder e econômico) lançasse raízes profundas no pensamento cotidiano do “brasileiro médio”. E tais raízes se mantêm até hoje frutificando com maior ou menor força – mais o mesmo dano na sociedade.

Esse pensamento, onde é a força que resolve os problemas, que a luta pelo bem estar individual está calcada na manutenção de uma estrutura “conhecida” e que tem caminhos (impossíveis ou improvavelmente alcançáveis) de ascensão e que a manifestação coletiva ou é apenas ou uma muleta para incapazes e relapsos (quando na busca de mudanças) ou uma expressão de força e unidade (quando guiada por um “líder” e pautada pela ideia de identidade e ordem) ainda vigora na atualidade. Com a ode a violência e as soluções de exceção e força, a ruptura do estado democrático de direito e o silenciamento das opiniões contrarias acaba parecendo a solução ideal, pois quem perpetraria tal “remédio” seria de alguma forma o portador de toda verdade e de uma clarividência do “certo e justo”.

Manifestação pedindo golpe. São Paulo, 2015.

Não falar da violência que foi o regime militar é, em última instância, ter que lidar com os resultados disso no cotidiano. Na verdade o regime militar que se iniciou a 60 anos são rememorados os todos os dias, com a manutenção do ideário que fez com que o regime de exceção prevalecesse durante mais de 20 anos de fato e posteriormente desde a década de 80 como um elemento subjacente no cotidiano das pessoas, por meio da justificação de grupos de extermínio, a militarização do pensamento e do cotidiano, a privatização da coisa pública, a ode à tecnocracia e toda a leva de violências ordinárias que o estado perpetrada contra os indivíduos.

Livro sobre o movimento militar lançado nos meses seguintes

Falar de regimes de exceção – seja com tanques na rua, como tradicionalmente aparece no regime militar das mais diversas representações, seja com movimentos jurídicos e legalizados nos escritórios e parlatórios legislativos e executivos – é necessário, mas não podemos esquecer que eles começam a medida que se ganham para a causa corações e mentes.

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