Intenções e tentações

“… Os estudos são a coisa mais importante, ainda mais para nós que somos negros.
– Pai, por que tudo é mais difícil para os negros?”

Vi essa pergunta nas cenas iniciais de um filme francês bem interessante (Bem vindo a Marly-Gomont) e acabo pensando na minha atividade: Por que tudo é mais difícil para historiadores?
Pode parecer despropositada a pergunta, mas sempre me questiono por que acabamos sempre parecendo os chatos de qualquer conversa, pois sempre estamos exercendo aquilo que aprendemos ao lidar com os fatos do cotidiano: observar o discurso, ver suas “brechas”, compreender sua construção e disso articular ele com outras intencionalidades presentes no cotidiano que se transformará, inexoravelmente, na matéria histórica.
Esses dias recebi um vídeo sobre uma iniciativa interessante para gerar informações sobre políticos para que a população pudesse “votar melhor”. Recebi isso depois de uma conversa – acho que teve gente que pensou ser uma discussão – sobre reforma da previdência e o papel do governo no cotidiano.
Como não pude abrir o video logo (talvez isso tenha sido até bom), procurei a origem do mesmo. Cheguei no site www.politicos.org.br. Segundo ele, a ideia é gerar um ranking para que a pessoa possa refletir sobre a atuação do politico e possa “votar melhor”. Bonito isso… logo na primeira página tinha a lista dos “melhores políticos do Brasil”. O segundo, segundo eles, é um deputado amalucado que se elegeu na base do grito, com o slogan que associava seu numero com o calibre da arma e as algemas que usava quando delegado. O terceiro era o atual presidente do senado.
Por curiosidade, percebi que não havia nenhum político da dita esquerda na lista inicial. Isso já soou uma luz amarela (apesar de reconhecer que a maior parte dos políticos das legendas de esquerda não tenham grande destaque mesmo).
Fui procurar os “métodos de pontuação” e percebi então que a métrica era bem clara – e significativa, explicando por que figuras atuantes de partidos de esquerda não comparecem nas listagens de “excelência” elaboradas por eles. Ganham pontos políticos que tinha presença (OK), reduziam gastos de gabinete em relação a média do congresso (OK), não tinham processos (OK), mantinham fidelidade partidária (OK) e que conseguiam propor e aprovar leis que buscassem, segundo eles, promoviam “Diminuição dos gastos públicos; Incentivo à livre iniciativa e regime de mercado; Combate à corrupção; Eficiência do serviço público; Meritocracia no funcionalismo; Liberdade de expressão e informação.” Isso indica o que é importante para eles e, mesmo que alguns tópicos sejam muito interessantes (e que eu concorde com eles), outros são bastante sensíveis – na verdade, problemáticos.
Entendendo parte do pensamento que baliza a atividade da equipe do site, voltei a buscar o tal do vídeo. No link de vídeos do site aparecem muitas produções que versam basicamente sobre como mudar o perfil dos politicos e dos poderes no Brasil, argumentos a favor das privatizações, a falacia de um “estado-babá” e como o discurso de esquerda está errado.
Particularmente me chamou a atenção o conjunto do site. Parecia muito profissional. E com o pessoal do jornalismo aprendi que sites também apresentam um “curriculum”, que indica quem está por trás do empreendimento e que é importante ver isso (assim como é importante para o historiador saber baseado em quem um autor faz afirmações e desenvolve conceitos). Apesar de existir um “fale conosco”, é no tópico “sobre” que as informações estavam expostas. Nele aponta-se que estão responsáveis pela iniciativa “por Alexandre e Renato, dois administradores de empresa” e que “Esse site é uma iniciativa particular dos fundadores, que são também os únicos financiadores desse projeto. Até o momento, foram investidos cerca de trinta mil reais na criação do site e mais cerca de cinco mil reais por mês de manutenção.”; Além disso, eles pregam serem um site “neutro”, sem vínculo com qualquer partido ou grupo de pressão (no vídeo – que assisti depois disso tudo – eles reforçam essa ideia).
Aí entrou o “sentido aranha” do historiador: Não existe iniciativa neutra em nenhum campo de atividade humana. Sempre existe um interesse e um direcionamento, a partir de conceitos e ideias previamente apreendidas. Além disso, gastar 36 salários mínimos para começar uma iniciativa e mais 5 mínimos por mês para manter ela funcionando é um investimento singular. Ainda para dois administradores de empresa (note, está no singular: é uma empresa só!). E estranhamente a única referência sobre os “empreendedores” é o primeiro nome, mais nada.
Estranho, não?
Mexendo um pouco em dados públicos do site – do mesmo modo que eles reunem dados dos políticos (Deus salve a internet, os padrões abertos e o Big Data) – pude achar os nomes dos donos do site. Por trás de uma “Associação Voto Real”, detentora dos direitos do site politicos.org.br, surgem Alexandre Ostrowiecki e Renato Feder. A dita associação fica localizada em São Paulo, no mesmo endereço da “GrandPrix Brasil Mídia Eletrônica”, a qual está no andar de baixo da Multilaser Produtos de Informática, empresa administrada por Alexandre e Renato. Além disso, eles são autores de livros sobre a necessidade de diminuir a presença do estado na economia brasileira e  dão palestras em eventos sobre o assunto.
Além disso, nos vídeos que falam sobre estado, impostos e o roubo que é isso ao trabalhador honesto, eles fazem duas coisas interessantes: a primeira é que jogam vários números para explicar/apoiar suas ideias, sem se preocupar em justificá-los, usando generalizações e arredondamentos. Isso é uma técnica antiga, onde o ouvinte fica afogado por números tão impressionantes que não tem tempo de refletir sobre eles, assumindo que quem fala fez isso – pensou e pesquisou sobre tais valores – antes, acaba aceitando a conclusão oferecida pelo seu interlocutor. A segunda é que dizem claramente que os impostos não oferecem nada de bom para o povo, mesmo um deles tendo feito mestrado por uma universidade estadual e a sua empresa sendo beneficiada por uma legislação especifica – a MP do bem, lembram?
Nada disso seria problema, se eles não se colocassem como neutros e não fazendo parte de nenhum grupo de pressão ao desenvolverem um projeto de formação/informação de eleitorado para “voto melhor”.

Por fim, então, volto a questão que me intriga: por que tem que ser tão dificil para o historiador conseguir uma conversa sem tantos volteios? Acredito que seja por que nunca é possível evitar ter muitos e muitos volteios em qualquer ideia que expressemos, vários desejos e profundos conceitos – as vezes inexprimíveis – principalmente naqueles discursos que se querem “neutros”.
Nessa hora, surge na minha memória (outra ferramenta usada a exaustão por nós historiadores) a seguinte frase: “Se você é neutro diante de uma questão de injustiça ou de opressão, você decidiu apoiar o status quo” (Desmond Tutu).

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