Neocolonialismo se combate [mesmo] com golpes?

Quem observou o noticiário internacional nos últimos dias deve ter visto dois movimentos que podem deixar apreensivos quem observa, por conta de seus desdobramentos, mas que são profundamente significativos.

O primeiro, talvez mais significativo porém menos visado, foi a mudança na constituição de Mali que assumiu como língua oficial 13 das línguas locais (outras 70 já haviam ganhado esse status nos anos 1980) e não apenas o francês. Ela é agora uma “língua de trabalho”, ou seja: uma língua do âmbito técnico, como foi o português na Macau. Cabe notar que a mudança constitucional no Mali ocorreu pelas mãos de militares que tomaram o poder em 2020 e denunciam ações de espionagem de militares franceses.

Assimi Goïta, Presidente provisório do Mali

O outro, mais falado, foi o golpe militar no Niger (algo particularmente recorrente atualmente em ex-colônias francesas), cercado por uma forte onda de reações regionais e com tons antifranceses compartilhados entre vários desses países. Esse fatos por si já são importantes do ponto de vista histórico, mas a reverberação deles na internet pode ser temerária, pois aparecem questões múltiplas que ouriçam muitos militantes. Entre elas, o tema do neocolonialismo é palpitante.

Através dos stories do instagram, cheguei na conta de alguém militante que, falando sobre esses golpes, afirmava que esses golpes eram apoiados pelo povo dos seus respectivos países, o que nem questiono, dado o que vemos cotidianamente no Brasil e no mundo e que tem questões bem locais (sem contar os filtros pelos quais essas notícias passam). Além disso, a pessoa afirma também, e essa me deixou de orelha em pé, de que esses golpes e o apoio do povo era um movimento contra o neocolonialismo que tem se feito perceber nas ações francesas (e por extensão europeias).

Antes de seguir, cabe fazer um apontamento: poderíamos definir neocolonialismo como uma espécie de empreitada de potências [europeias ocidentais em sua maior parte, mas não só] para subjugar outras terras e nações subdesenvolvidas e/ou em desenvolvimento. Seria um movimentos de reação (ou seja, reacionário) ao processo emancipatório das nações africanas que tem ocorrido desde os anos 1950 (ou um pouquinho antes), buscando manter a influencia e o domínio econômico sobre essas nações das mais diversas formas, incluídas aí algumas “ajuda humanitária” e ações de desenvolvimento dependente.

Esse argumento de luta contra o neocolonialismo é extremamente valido porém esquece de alguns players nessa questão. Se no modelo “comum” de colonialismo o agente seria predominantemente estatal, e em boa parte de ações neocoloniais diretas podemos identificar as bandeiras nacionais nos seus agentes, muitas vezes elas suportam ações de grandes conglomerados privados – como o que difunde para você vídeos, imagens, áudios e textos, tendo a capacidade de fazer com que ele “desapareça”, caso ele não goste do conteúdo, ou caso lhe agrade o tema e a abordagem, ocorra justamente o oposto.

Mas essa não é a questão aqui. Pelo menos não a maior. A pessoa militante colocou como um grande elemento de análise desses golpes – se não o seu maior trunfo e mérito – o apoio popular contra “presidentes que estavam a serviço da França”. E o sinal de alerta deveria tocar nesse instante.

“Porque?”, você pode se questionar. Na política podemos observar que:

– Não existe vácuo: a retirada de um poder abre espaço para a chegada de um novo poder. No caso das relações internacionais atualmente, estamos – de novo – observando a África e a Ásia se tornarem palcos de embates entre Europeus (talvez como bloco e não mais como países individuais, como no inicio do século 20) e novos atores: Rússia e China. Ao mesmo tempo que o “neocolonialismo francês, europeu e ocidental” está sendo enxotado das antigas colonias com esses golpes, a “Mãe Rússia” vem sendo celebrada como libertadora e patrocinadora desse “reavivamento africano anti imperial”, seja com apoio político, dinheiro, suporte técnico ou armas (e também, nesse caso, “exércitos particulares e privados” como os homens do Prigozhin, aquele do grupo Wagner, que até tempo atrás era chamado de “grupo de segurança privada” e que já atuam em África, é verdade, a um bom tempo);

Manifestação anti-francesa no Mali

– As redes de poder são tão bem unidas como um tecido muito bem elaborado: Esses “novos líderes” africanos, que estão fazendo “a vontade do povo”, não escondem que passaram temporadas de treinamento na China. Cabe lembrar que nos últimos anos da política internacional americana foi de afastamento e isolamento (Podemos discutir sobre o que realmente foi isso, mas para o desenvolvimento do argumento, podemos dizer que nos últimos anos o governo dos EUA se preocuparam muito menos com a África do que nas décadas de 1970, 80 e 90), a China foi o país que mais avançou em ações de “fomento e desenvolvimento” no continente. A China tem sido, mesmo que de uma forma muito discreta, um apoiador fundamental para o esforço russo de retomada de protagonismo internacional. E ela própria tem sido ativa em outros lugares, como no Oriente Médio, onde ela promoveu acordos diplomáticos parados a anos e a própria iniciativa sino-brasileira de adoção do yuan como moeda de comércio internacional (ao invés do dólar) faz com que o eixo de poder fique visivelmente mais ao oriente;

– Cabe lembrar também que durante os anos 1960 e 1970, quando da descolonização da África, muitos “libertadores” celebrados em praça pública mantiveram um tripé de problemas que arrastaram as novas entidades políticas ao abismo: um apego extremo pelo poder (que era justificada pelo amor a nação e o temor de ações de sabotagem contra o jovem país), resquícios da velha estrutura colonial europeia, com seus defeitos e modus operandi como o fomento de conflitos entre grupos étnicos e manutenção da velha dependência técnica e econômica.

Idi Amin – Presidente de Uganda (1971-1979) havia servido no exército britânico. Seu governo foi acusado de ter matado mais de 300 mil pessoas

Apesar de (possivelmente) irrelevante no cenário de discussão aqui proposto para alguns, o conflito na Ucrânia tem temperos semelhantes ao que vemos nas terras africanas atualmente, já que a ação russa se dá sob a alegação de ações extremamente pró-ocidente do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, a despeito da Rússia também estar agindo de forma colonial sobre a Ucrânia – seja diretamente com a Crimeia e no leste do país, seja indiretamente com exigências como a de que “nunca mais os ucranianos deveriam pleitear a entrada na OTAN” para evitar/parar a atual guerra.

Como mostraram nos anos 1960 Kwame Nkrumah, primeiro presidente de Gana que popularizou o termo “neocolonialismo” ou os diversos pesquisadores como Mark Langan as nações devem ser independentes e toda interferência estrangeira deve ser rechaçada, pois as nações devem, antes de mais nada, estarem atentas ao bem-estar do seu povo – essa categoria meio etérea e fluida que serve para muitos propósitos discursivos.

Kwame Nkrumah, primeiro-ministro (1957-1960) e presidente de Gana (1960-1966), foi um dos líderes do Pan-Africanismo

Mas ação critica ao neo-colonialismo não pode ser relegada apenas aqueles que desagradem a visão militante, pois se ignora que os “bonzinhos e libertadores” (ao quais o militante se conecta) fazem algo pelo “grupo oprimido”, apenas o fazem por também terem seus interesses. Por isso, celebrar golpes (sejam eles militares ou civis), como a pessoa militante fez, mesmo que seja por conta de um “motivo nobre” é muito temerário, pois as bases dessa “ação voluntarista” baseada na “revolta” do povo (de novo esse conceito super moldável e fluído da História e de outras Ciências Humanas) pode ter resultados muito menos palatáveis do que a gente pode perceber agora, correndo-se o risco de apenas trocar a mão que segura o cabo do chicote. E aí, como se diz no interior brasileiro, o “molho saiu mais caro que o peixe”.

Em tempo, é interessante também assistir a entrevista Carlos Lopes, economista da Guiné-Bissau, para a DW (Deutsch Welle):

Carlos Lopes: "Há um cansaço africano do discurso ocidental moralista

E a entrevista escrita onde essa entrevista está aqui:

https://www.dw.com/pt-002/gostar%C3%ADamos-que-o-nosso-pa%C3%ADs-voltasse-%C3%A0-vida-normal/a-66526226

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