Lugar do anti-intelectualismo?

Desde os anos 1960 estamos mudando o modo de entender a sociedade. O “encolhimento do mundo”, o questionamento das macronarrativas hegemônicas e o fortalecimento da difusão e expansão da comunicação e do conhecimento possibilitou ao mundo acadêmico (e de alguma forma também a sociedade que se encontra além muros da universidade) a ampliação do numero de vozes e de lugares que se faziam representar e ouvir.

Surgiu o conceito de “lugar de fala”, algo interessante de se pensar, pois forçava que se ouvisse e atentasse para a voz daqueles que nunca eram colocados no centro das discussões, ou não estavam no centro por motivos causados por esses centros. Então mulheres, negros, minorias étnicas, pessoas diversas em vários sentidos tinham suas narrativas, seu olhar e sua “leitura de mundo” sobre temas que lhe diziam respeito diretamente passaram a ser consideradas pois “eles tinham lugar de fala”. Isso fez bem para academia, em especial pela ótica do pensamento “decolonial” ou “pós-colonial”, que busca “descentrar” a produção do conhecimento, colocando um olhar “não-branco”, “não-europeu” e “não-masculino” em pauta.

Entretanto, o ser humano – e tudo que é feito por ele – é complexo e cheio de facetas diversas, que podem articular-se com outras ações humanas (também multifacetadas) dos modos mais diversos e bizarros possíveis. Movimentos “revolucionários”, “contestatórios” ou (o que pode parecer contraditório, mas não é) “tradicionalistas” e “conservadores” – ou pelo menos alguns de seus membros – tem uma forte energia anti-intelectual. São inúmeros os exemplos de um certo ódio, ou pelo menos desapreço, pela discussão intelectual, pelo questionamento pautado por evidências e hipóteses ou pelo método como uma forma de trabalho intelectual de busca e descoberta não só do desconhecido como também do erro naquilo que já se conhecia, mas não entendia claramente como se dava. E esses movimentos, em nome “da causa”, buscam silenciar e dominar aqueles que estão olhando para o mundo fora das regras que eles estabeleceram para tal.
Nesse processo, acabam exigindo daqueles que se engajam no movimento uma “aceitação completa e inequívoca” de todo o “pacote” de crenças, de descrenças, de “verdades” e de “belezas”. Marie Declerc (jornalista brasileira) comenta isso dizendo que as vezes “militância quer que se goste de coisa ruim”. O Anti-intelectualismo que muitos movimento fomentam acabam por valorizar certas expressões não por sua qualidade, força ou capacidade de transformar o meio onde ela se encontra, mas por estar sendo um veículo desse “lugar de fala” e servir como “peça” no pacote vendido pela militância para se mostrar anti alguma coisa.
Isso não ocorre apenas junto aqueles que tomam o conceito do “lugar de fala” como uma pedra angular para desvalorizar qualquer um que, de alguma forma, não esteja adequado a narrativa da militância. Ocorre também por aqueles que, de modo oportunista, ao perceber o mal-estar que certos grupos causam junto ao “cidadão médio”, partem para o outro extremo para declarar-se “anti-politicamente correto” ou qualquer “tonteria” que se possa observar e rotular na grade dos “anti”.
É importante sim que se ofereça meios e se usem os “privilégios” que são oferecidos para alguns nos meios acadêmicos e sociais para que outros, alijados a muito tempo dos meios de ascensão e manutenção social, possam alavancar-se e criar condições de mudanças pessoais e sociais. Mas mão podemos ignorar que conceitos, ideias e reflexões se constroem das mais diversas formas e deveria ser a qualidade e a potência transformadora das ideias os elementos que regem a avaliação de ideias, discursos e ações, não somente seus portadores.
Se não, corremos o risco de repetir os erros do passado apenas trocando o sinal, favorecendo uma critica vaga (mas virulenta) ad hominiem e oferecendo justificação para que criticas a problemas capitais da nossa sociedade sejam validadas apenas por que o indivíduo “está” num lugar de fala que “obriga” que ele seja ouvido. Assim, valorizamos um certo vereador de uma capital brasileira que se coloca como “anti” alguma coisa e que ele deve ser respeitado por que “tem lugar de fala”, não importando a estultice que ele diga e “cancelamos” (termo apropriado para sua época belicista, castradora e ocultadora dos desafetos) pessoas que estudam anos sobre um assunto por não ter “passaporte certo” para falar sobre algum assunto do “lugar certo”.

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