Poder e desejo feito em pedra e emoções

Estamos numa época pouco auspiciosa para as estátuas, bustos e outros monumentos celebrativos. Mas antes de colocar simplesmente se derrubar estátua é correto ou não, deveriamos questionar um ponto interessante: As estátuas lembram algo, então, quem define o que vai ser lembrado?
Essa é uma questão que parece que está passando ao largo de muitos dos “revoltosos” que fazem todo um movimento, justo, de derrubada de “símbolos do mal que foi provocado” pela sociedade. As estátuas, assim como outros elementos na paisagem urbana como nome de ruas e mobiliario público, por exemplo, são elementos que remetem ao poder e que mostram a visão de mundo de um grupo que está no poder. Não vemos, geralmente, a visão de mundo de outros grupos se materializando dessa forma no espaço público. Grupos “alijados do poder” e que não são geralmene ouvidos pela “administração” – e muitas vezes por parte da sociedade civil – se materializam na cidade por outros caminhos, em outros meios, mas não com estátuas. Logo, a estátua por vezes é símbolo de alguém ou de um grupo que ignora e subjuga outro grupo, que quer se fazer dominante e não aceita contestação (com muita tranquilidade).

Também é interessante pensar que muitos desses símbolos na cidade tocam diretamente nas sensibilidades de certos grupos. No Brasil, talvez um dos casos mais emblemáticos seja da Marielle Franco, que teve uma placa em sua homenagem quebrada publicamente por alguns membros de grupos de apoiadores (e políticos eleitos posteriormente) de movimento de direita, mas vemos isso com políticos oposicionistas que tomam o poder ou grupos de pressão que veem ataques ao que acreditam quando outros grupos ganham (algum) reconhecimento público.
Pensar no levantamento e na derrubada de estátuas passa por pensar em como a história é construída e mantida, já que ela é dinâmica. Sempre vislumbramos grupos majoritários e vencedores de embates políticos e ideológicos tentando apagar – ou demonizar – seus adversários derrotados. Sejam com imagens de derrubadas de estátuas e outros elemento que lembram o grupo apeado do poder (faça o exercício: qual cena mais significante do fim do regime soviético lhe vem a cabeça? E do governo de Saddam Hussein ou da Alemanha Nazista?) E isso não caminha apenas nas estátuas do “passeio público”, Queimam-se casas e plantações de aldeias derrotadas, invadem-se lugares de culto e destroem-se imagens e artefatos religiosos da “fé condenada” por ser contra a “verdade” (dos ganhadores).
Defender as estátuas por serem meras “lembranças da história” é ignorar que seu significado pode ser reconstruído e retomado pelas pessoas. Dois exemplos que lembro rapidamente é do “Fauno” colocado no parque Trianon em São Paulo (parque esse que oficialmente tem o nome de uma liderança tenentista, movimento que em ultima instância deu origem à Coluna Prestes, ao Integralismo e mesmo o Getulismo) depois que foi “expulsa” das ruas por ser considerada uma estátua em homenagem ao capeta (o fauno tem corpo de gente e pés de bode, então já viu, né?). Outro monumento ressignificado é a própria torre Eiffel, em Paris, que era para er apenas uma “propaganda” das possibilidades do uso das estrutura de ferro em construções e deveria ter sido desmontada ao fim da Exposição Universal de 1889 e hoje é o monumento pago mais visitado do mundo.
Derrubar estátuas não é pecado, mas ignorar o que esse movimento significa (e que é muio mais do que “apagar a mancha negra da história” [esse comentário é para lembrar do apagamento de registros sobre escravidão dos cartórios brasileiros – as vezes por fogo – que foi posto em marcha pelo nobre intelectual Rui Barbosa, quando ministro da Fazenda. Essa ação o qualificaria para ter estátuas derrubadas e se renomear fundações – como a Casa de Rui Barbosa – ou logradouros público, como a Av. Águia de Haia, na zona leste de São Paulo?]) faz com que não entendamos também o poder que está presente no levantar estátuas e, mais ainda, no processo e ressignificação que elas estão sempre sofrendo. Assim, derrubar o Borba Gato de São Paulo (ou seria de Santo Amaro, a cidade esquecida por muitos e fagocitada pela “pujante” capital bandeirante?) ou o Bandeirante de Goiânia (já ilhado no cruzamento de duas avenidas de transito pesado do centro da cidade, sendo mera lembrança de uma “praça” que foi substituída pelo semáforo ao ser construído um monumento ao desenvolvimento: o BRT chamado de Eixão, e que matou parte do centro de Goiânia. A outra parte talvez morra com o novo BRT que está em construção, esse no sentido norte-sul da cidade, enquanto o outro é em leste-oeste) sem que seja recolocado em questão como outros grupos por eles destruídos seriam relembrados.
E quem seriam os retratados nas estátuas de hoje (possivelmente derrubáveis nos próximos 20 ou 30 anos por que “não se encaixam mais na nossa atual visão de mundo”)? Artistas, jogadores de futebol, cientistas, pseudo-filósofos, eu, você, o índio idealizado, o negro genérico, ou nenhum desses, e passaríamos a celebrar apenas conceitos abstratos representados de forma material, (ironia do destino) ao sabor da arte soviética ou européia, com suas “liberdades de vestes esvoaçantes” ou “proletários irmanados pelo bem na nação”, idealizada pelo grupo no poder?

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