Toda religiosidade é condenável na República?

Os últimos dias trouxeram mais eventos que motivam criticas em relação da presença da religiosidade no cotidiano da sociedade brasileira, em especial na arena política Não podemos ignorar o papel na organização e na modelagem das relações sociais, políticas e ideológicas da instituição Igreja (de todas as denominações e linhas, mas especialmente as cristãs, por conta de várias questões históricas). Apesar de compreender as critica dos “médias” (aqui entendidos não só como os agentes das grandes agências noticiosas, mas também “influencer” mais ou menos independentes) contra imagens que ligam manifestações de religiosidade no campo político e educacional, esse é um campo pantanoso onde o embate traz o risco de causar mais estrago do que a possibilidade de uma “vitória retumbante”.

Para ser feita de forma correta, uma discussão sobre a relação entre religião, religiosidade e politica (ou sociedade) passa pela compreensão de que essas duas primeiras coisas são ligadas, mas diferentes. Não entender isso faz com que as criticas sejam rasas, caricatas e mesmo contraproducentes. Essa critica tenta se vincular a um “iluminismo anticlerical” e mesmo “antirreligioso” herdeiro de algum modo das discussões revolucionárias francesas – aquela mesmo que pôs para correr o rei de Portugal para o Brasil – e mesmo de uma linha de pensamento racional francês que, ironicamente, acabou vinculando-se a uma igreja (o positivismo e a igreja positivista), mas ignora todo o processo histórico que observamos no Brasil.

Mesmo na França, o berço dessa critica à instituição-Igreja, a religiosidade é algo singularmente presente (mesmo que os franceses vejam isso como aspecto de uma “ação pessoal”, não deixa de ser interessante ver a religiosidade que atravessa o cotidiano francês de modo subterrâneo). No Brasil, onde a separação do estado e da Igreja não se verificou de fato, apesar das muitas promessas legislativas impressas em constituições e leis durante os mais de 130 anos de república, agentes ligados a Igreja [entenda-se Igreja cristã] buscaram o poder lançando mão da instituição como trampolim para seu projeto de poder. E esse aspecto não está ligado apenas à personagens da direita ou do conservadorismo, já que a esquerda muitas vezes aproximou-se desse público e usou disso para se legitimar em diversos momentos. E não só na religião dominante, mas também em religiões afro-brasileiras ou brasileiras que ganharam rótulos de “manifestações cultural e resistência”.

Mas a presença de Igreja no cotidiano das pessoas está para além da instrumentalização que certos “líderes” fazem, usando esse grupo, por meio da instituição, para projetos pessoais de poder que acabam se calçando em leituras muito convenientes das práticas, dos dogmas e das tradições religiosas. Eles usam uma retórica de minoria ameaçada estando numa posição de maioria dominantes – e sufocantes.

Mas, para além do xadrez político que tem a igreja como peça importante, existe todo um universo de pessoas que se aproximam das diversas instituições religiosas e se conetam a elas de modos fluidos e dinâmicos. Sendo essas instituições grupos que possibilitam coesão, circulação e apoio, muitas vezes eles acabam ocupando espaços deixados “disponíveis” por instituições como o próprio governo, e acabam servindo como bases de apoio de figuras oportunistas. As pessoas se vinculam afetivamente a esses espaços e aos outros indivíduos que ali estão, e a religiosidade passa a ser um “idioma” presente nesse meio, visto que nesse meio circulam apoios mútuos, uma reorganização de vida e acessos privilegiados a bens e serviços – reais ou simbólicos.

É importante entender que o oportunista também fala essa língua, mas com um objetivo muito claro: que as pessoas que estão dentro do grupo se conectem afetivamente a ele e que disso possa tirar proveito de poder. Mas não é por “falar o mesmo idioma” que todas as pessoas que estejam nas Igrejas se vinculam aos oportunistas, e nem devem ser vistos nesse prisma pelos criticos, sob o risco de criar uma forte resistência. Os criticos precisam entender dessas articulações e identificações para poder apontar os problemas da tomada do governo e da sociedade por esses oportunistas que usam a religiosidade por meio da religião para essa “conexão privilegiada”, e não da religiosidade e da religião em si, visto que ela acaba sendo um meio pelo qual as pessoas se organizam diante de tempos tempestuosos como os que estamos passando.

Publicar comentário