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Ditadura subterrânea

Toda vez que estudamos uma ditadura, qualquer uma, costumamos ver tudo como uma forma articulada. Algo como um roteiro cinematográfico que tem um momento, de ápice talvez, quando as tropas vão para a rua, o presidente é deposto e é feita a leitura de um manifesto onde se diz o que o “novo governo” está “defendendo o país” de algum mal terrível. E enquanto isso não acontece, não se utiliza o termo “ditadura”, pois “ainda existe liberdade”.

Mesmo quando temos alguma noção das tramas (que normalmente são no campo político) que levam à tomada das ruas pelas tropas, as conexões usualmente são muito próximas e cabais: um conjunto de pensamentos e atitudes do governo “na corda bamba”, alguns indivíduos “voluntariosos” que começam a se mover e por fim a mobilização de certos setores – nacionais e estrangeiros – que desejam derrubar o “inimigo do povo” (nas palavras deles) e alçar ao poder alguém mais “competente” (leia-se: afeito aos nossos interesses).

Contudo, nenhuma ditadura se instaura de modo rápido. Na verdade, qualquer movimento golpista – com tropas nas ruas e tudo que um golpe “tradicional” tem – é precedido por um golpe muito mais poderoso e silencioso: um golpe subterrâneo.
Estou chamando de golpe subterrâneo um movimento ameno, de longuíssimo prazo, quase imperceptível e pouco incomodo, mas muito eficiente: a preparação de um “estado de espírito” que aceite a “nova ordem” a ser estabelecida pelos golpistas. Esse “estado de espírito” vai se consolidando aos poucos, por meios tão diversos quanto a TV (tanto pelos jornais quanto pelo entretenimento) e a leitura direcionada, passando por igrejas, escolas, grupos de influência, como a família e os amigos do futebol, por exemplo.
São pequenas coisas que no caso brasileiro vão estabelecendo a normalidade, como a ideia de que apenas pela força se resolvem as coisas, ou que quem muito questiona merece uma “lapada no lombo”. Essas ideias, quando colocadas assim, diretamente, chocam e podem ser questionadas fortemente, mas quando você tem meios poderosos como redes televisivas que cobrem quase 100% do território nacional, meios de difusão rápida e descentralizada de informações de fontes “fiáveis”, como as redes sociais, influenciadas por aquelas fontes que apontadas no paragrafo anterior, essas ideias vão se naturalizando e sendo absorvidas, justificadas, compreendidas (?) e replicadas.
Esse processo não começa dias ou meses antes de um grupo tentar tomar o governo. Por vezes isso tem anos de preparação. Alguns filmes e séries apontam como é importante para a “tomada do poder” a existência de uma “geração zero”, que está profundamente comprometida com os conceitos desse “novo tempo”. E como isso dá-se nessa longa duração, é difícil de perceber. E são essas pequenas ações que poderão – ou não – garantir a manutenção das ideias que se quer colocar no poder.
Muito dos movimentos “anti” que vemos a partir dos anos 2010 no Brasil não são frutos de apenas as lambanças do governo do momento. Eles estão enraizados numa série muito maior de desgostos e de sonhos, plantados cuidadosamente desde os anos 1980, pelo menos. O empreendedor meritocrata, anti-socialista e apoiador da “justiça” e das “forças da ordem” de hoje vem de um momento onde o self-made man começa (ou retorna) a ser o modelo ideal de ação no mundo e que um novo (não) Estado começa a ser gestado – usando exemplos anteriores como modelo do que deve – ou não – ser feito. Nota: esse não Estado não é uma possibilidade de auto-gestão dos indivíduos ou da sociedade. É a possibilidade de um grupo (privilegiado, poderoso, bem articulado e com capital) agir livremente e não ter seus desejos e agências sobre todo o resto da sociedade limitados pela ação de algum poder que lhe seja externo.
Estamos então fadados a sucumbir a esse modelo ou teremos que aguardar outros 40 anos para alguma mudança? Possivelmente não, caso aqueles que percebam esses pequenos movimentos passem a tentar (e consigam) agir sobre os indivíduos e ressignificarem neles essas crenças, mostrando onde estão seus problemas e oferecendo outros sonhos para os indivíduos, descolonizando-os desse olhar de mundo onde “escolher entre todos os direitos e nenhum emprego ou escolher nenhum direito e emprego” é o único par de opções para o ele.

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