O trabalho enquanto valor é um obstáculo a ser superado

Chegamos numa encruzilhada dura de encarar: trabalhar pra viver ou viver para trabalhar, morrer de trabalhar ou trabalhar pra não morrer. Pode parecer tudo muito “jogo de palavras”, mas é um problema que devemos encarar e, parece, não tem solução fácil.
Não conseguimos pensar, pelo menos não de forma cotidiana, em um cenário no qual o trabalho não seja padrão na vida dos indivíduos. A condição de não trabalhar é automaticamente atribuído os adjetivos que a ligam a vagabundagem ou então assumimos tal condição como um momento de interstício, ou seja, são as férias, momento que se justifica justamente por causa do trabalho. Nossa lógica não concebe a possibilidade de um indivíduo prescindir do trabalho sem que isso faça dele ou um dândi ou um inútil para a sociedade (aqui já tem um conceito complicado de lidar: o de utilidade do que se faz).

Essa condição se dá pois somos acostumadas a acreditar e a valorizar o trabalho como algo efetivamente distintivo na vida do indivíduo. O mote “o trabalho dignifica o homem” diz muito sobre nossa sociedade. Entretanto, esse trabalho que dignifica deve ser visto sob diversas possibilidades de compreensão. No Brasil, nem todo trabalho dignifica, e a verdade é que alguns até mantém o sentido primeiro que a palavra trabalho (presume-se) carrega: instrumento de tortura.
Assim, existe um inchaço em certas expectativas de trabalhos em áreas “não-manuais”, que permitem que se carregue mais símbolos de status e poder. E um olhar bastante depreciativo em áreas “menores”, que não trazem sobre os ombros o brilho das lampadas frias, o frescor do ar-condicionado e a beleza das roupas bem cortadas (que na verdade são uniformes caros e, em geral, desconfortáveis).
Numa sociedade onde o trabalho serve mais para “ocupar o homem”, já que “mente vazia, oficina do Diabo”, do que pra lhe desenvolver vontades e possibilitar vislumbres de um futuro diverso, pensar numa sociedade do pós-trabalho é ao mesmo tempo assustador e desafiador. Devemos questionar a função do trabalho para as pessoas e até onde vale a pena fazer com que as pessoas se envolvam em atividades que não passam de repetições mecânicas de movimentos definidos por alguém misterioso (o chefe, o sistema) ao invés de lançar mão da automatização para que o homem possa se libertar do tri-palio e transcender, resignificando o que faz.
O modelo de trabalho apresentado a cada proposta de modernização, reorganização e desregulamentação das relações trabalhistas que ganha a luz do dia, ao invés de transcender o ordinário que hoje existe nesse mercado, na verdade parece direcionar o indivíduo para tornar-se o protagonista do conto “O Arquivo”, de Victor Guidice (quer conhecer? Clique aqui!).
Trabalhos manuais, ou mesmo técnicos, acabam sendo relegados ao “status” de sub-trabalho para sub-gente. E as pessoas só embarcam neles por que não tem possibilidade de outros, tido por mais nobres. Por outro lado, passear por corredores de universidades possibilita ouvir história de pessoas que fazem cursos prestigiosos e distintos que não suportam por que “dá dinheiro”. Estão errados? Talvez não. Mas poderiam estar melhor.
Pensar o pós-trabalho é pensar o que o homem pode fazer diante de um cenário que robôs fazem produtos de consumo, plantam e transportam alimentos e organizam dados. Mas não só o que pode fazer o homem “intelectual”, que já se insere hoje nos trabalhos “socialmente dignificantes” e que pode se dar ao luxo de escrever textos elogiosos a si mesmo por sua capacidade de desprendimento para sair de uma empresa bem sucedida e abrir um “food truck gourmet” com sonzinho indie num bairro gentrificado; É também o sobre a situação do homem que tem que suar pra ganhar o mínimo para sobreviver, sacudindo quilômetros no transporte lotado, vendendo sua mão de obra naquilo que pode se encaixar, carregando cargas como bicho ou máquina, ou servindo de bucha para fazer aquilo que os outros não querem sujar as mãos ou investir dinheiro, que mora num bairro esquecido e hostilizado e que acaba ficando preso ao que oferecem as mídias, sendo feliz com álcool, televisão e, talvez, alguma convivência social fragmentária.
Romper com o pensamento de que o trabalho tem um fim em si mesmo – e que aquilo que se obtém com o dinheiro que resta no fim do mês é o que distingue o progresso humano – é o desafio pungente e urgente da nossa sociedade, pois as mudanças nas relações de trabalho já estão aí, e aqueles que dispõem dos meios de produção (e não precisam vender a mão de obra para viver) continuam em posição de ganhar dinheiro com o trabalho alheio, seja de humanos ou de maquinas. São aqueles que não podem deixar de trocar sua força física (ou mesmo intelectual) por “meio circulante” que serão impactados pelas mudanças no mundo do trabalho, onde o seu trabalho não será mais necessário, a medida que a aquisição e manutenção da máquina se tornará mais barata que o custo de manter o homem engajado nas lides da produção.
Talvez, num futuro próximo, o mote “O trabalho dignifica” (e o conceito do trabalho como valor e objetivo na vida) não sirva mais para a sociedade. Mas qual o novo mote se talhará para manter multidões dóceis as necessidades daqueles que lançam mão do trabalho alheio como “fonte de energia e mérito” para sua própria fortuna?

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