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Aylan foi a praia

Esse texto saiu hoje, dia 15.09.15, n’O Popular.
Essa semana será marcada por uma das imagens mais duras e chocantes sobre a questão dos refugiados africanos, do Oriente Médio e asiáticos que chegam desesperados ao continente europeu, buscando condições melhores de vida e segurança. Também será marcada pelo frisson que tal imagem causou nas redes sociais. A criança de bruços, sem vida na areia da praia turca, sendo olhada por um adulto nos lembrou da humanidade que a questão comporta. Aylan era o nome daquela criança que, junto com os pais, buscava um lugar melhor para viver. Longe das bombas que caem na sua Síria natal.

Vi questionamentos, repreensões e duvidas sobre aqueles “que defendem os direitos humanos” e a ONU. Também vi pedidos de oração para os “imigrantes” e análises diversas. Toda essa repercussão é boa, leva-nos a refletir sobre um problema que, apesar de aumentar nos últimos meses, está aí a anos, com uma maior ou menor presença nos noticiários de TV de tempos em tempos.
Mas, e sempre tem um mas para “desafinar o coro dos contentes”, essa é uma questão que bate a nossa porta. Também é problema nosso, brasileiro, não só europeu. Semanas atrás, e pela primeira vez registro isso publicamente, presenciei uma cena quase tão dura quanto a de Aylan morto na praia quando se pensa na relação com indivíduos que deixam seu país por conta da rudeza da vida, buscando outras terras. Depois de almoçar um restaurante comum do centro de Goiânia (self-service por quilo, onde comem empregados do comércio miúdo, bancários e de prestadoras de serviços), ao pagar, aproximou-se um rapaz. Não me pediu nada. Na verdade, virou-se para o caixa do restaurante (que acumula a função de gerente – e possivelmente de dono também) e perguntou, num português que denotava bem sua origem (alguma terra onde se falava o francês como primeira língua), sobre um cartaz que estava na porta do estabelecimento. Perguntava sobre o emprego ali anunciado. A resposta foi áspera: “Não. Não. A vaga é p’ra mulher”. A réplica, esperançosa: “Posso trazer minha irmã?”. O que ouvi me deixou tonteado: “Não, pode não… não vai dar certo!”.
A questão não era ser ele homem e o emprego ser para mulher. Era ele ser negro, imigrante, falar mal o português. Ele e a irmã. Nesse instante eu já tinha pago a conta. Mas o que eu fiz? Questionei aquela atitude? Apontei o dedo para o nariz dele gritando “xenófobo” ou coisa semelhante? Não… calei-me. Vergonhosamente calei-me.
E hoje, aqueles que questionam a Europa com suas políticas de austeridade e de refugio, será não percebem que o problema está também nos bastidores, nas guerras e na exploração extrema que as terras de origem desses refugiados de guerra, de fé e de mercados sofrem? E não percebemos que fazemos semelhante desdita, ao atirar em haitianos, humilhar senegaleses ou colocar sírios e palestinos na mesma bateia de terroristas.
A questão é profunda e global. E sendo global, é local também. Está à nossa porta. E se o questionamento é importante, rever nosso olhar sobre essa questão, encarando esses refugiados não só como a imagem de Aylan, a criança síria morta em águas turcas na esperança de ir para a Europa, apenas como mais uma daquelas que estampam jornais, ganham prêmios internacionais, virem capa de livros e coisas assim. Que não nos calemos diante de novos Aylans ou de outros rapazes anônimos que buscam trabalho num restaurante ordinário de Goiânia, aos quais os governos negam a humanidade dizendo que defendem a humanidade dos “patriotas concidadãos, indivíduos de bem”. Nem nos calemos diante de nós mesmo e de nossos pares, diante de nossas pequenas omissões diárias.
Givaldo Corcinio
Historiador e mestre em comunicação

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