Entre meme e história: Tinha uma Guiana na pesquisa
A internet é um lugar complexo onde, desde de sua origem a informação circula e, o que talvez assombre muitos ainda hoje, se transforma. E para o bem ou para o mal, qualquer informação pode ser linkada, associada, repassada, remasterizada e reorganizada, possibilitando que todo paragrafo produzido conduza a grandes discussões, bobeiras sem tamanho e informação útil e curiosa. Mas mesmo sendo um fenômeno global – ou globalizado, ou ainda globalizante – a internet toma muitas cores locais. Assim, podemos mesmo dar uma geolocalizada em alguns circuitos ou tematizada quando pensamos em outros, e desse modo falar em “internet brasileira” ou “internet lusofona” não seria incorreto (e ajudaria a dar um recorte que direciona quem tem acesso uma discussão empreendida ou à um conjunto de manifestações, como um meme)

Pois bem, quem está na internet brasileira – ou pelo menos tem acesso a toda sorte de vídeos, áudios, desenhos e tudo que circula em redes sociais e aplicativos de mensagens – deve ter se deparado com o “sucessor espiritual” do meme “devolvam nosso ouro”, direcionado aos portugueses. A história da “Guiana Brasileira” tem tomado uma proporção tal, com a criação de toda sorte de imagem e comentário – de bandeira a campanha para “governador do vigésimo oitavo estado brasileiro” – que fomentou respostas, sendo que a de Manuel Cardas da Rádio Comercial de Lisboa (ou seria Vitória da Reconquista?) a melhor que tive acesso, com uma resposta a altura, onde afirma aceitar a anexação e renomeação de Portugal se o Brasil aceitasse sua condição de colônia americana (ou estadunidense para os “reformistas”), sugerindo assim 12 nomes essa nova condição. Mas foi o comentário de Marco Franco Neves, filólogo português que me acendeu um alerta: sim, existe uma Guiana Brasileira e não seria Portugal.

E as pesquisas me chamaram atenção para como a narrativa nacional é bem “focada”: a história do Brasil olha para certas regiões e parece que nada acontece fora dela, quase como se estivessemos em uma grande revista em quadrinhos, onde só existe o mundo que foi desenhado naquele instante, com o mundo desaparecendo quando sai do campo de percepção do leitor.
Bom, a Guiana – como bem disse uma influencer/comediante portuguesa, a Nokas Galaxy – é um país… pra ser mais exato, atualmente são dois países e três regiões. A mais conhecida dessa área– ou melhor, a as vezes lembrada – Guiana (que já foi Britânica, hoje é independente mas anda as turras com o Seu Maduro da Venezuela), o Suriname (que um dia foi Guiana Holandesa, mas também ficou independente lá pelos idos da década de 1970. Tem também a Guiana Francesa, uma parte da União Europeia na América do Sul e que faz o Brasil ser o país com a maior fronteira compartilhada com a França (mas sem animação, pessoas: diferente da Europa, para ir visitar Caiena, a capital desse departamento francês, suas florestas ou ver um lançamento de um foguete Ariane – como o povo faz em Cabo Canaveral, nos EUA, você precisa tirar visto… o que normalmente não é fácil). Tem também a chamada a Guiana espanhola, que até hoje é zona de conflito entre os guianenses e os venezuelanos (quem assistiu jornal, talvez lembre da história da anexação de Essequibo… então…)
E chegamos a parte brasileira…
…que seria a Guiana Portuguesa. Até 1823 podemos dizer que a região onde hoje é o Amapá fazia parte de um estado que não era o Brasil como entendemos hoje – O Estado do Grão-Pará. E são muitas as histórias que envolvem a região.
Inicialmente voltaremos a um evento que, quando estudado, é feito com olhos para o sul: o tratado de Madri de 1750. Ele surgiu com uma espécie de “confirmação/arrumação” do tratado de Ultrecht, que foi acertado entre as nações europeias que estiveram envolvidas na Guerra da Sucessão Espanhola. Esses tratados mexeram com as fronteiras em diversas partes do mundo. Nesse canto do sul trouxe a colônia de Sacramento para Portugal e dividiu os territórios das Sete Missões entre os Ibéricos. Mas também selou alguns destinos no norte da América do Sul: definiu o rio Oiapoque como a divisa entre a colonia portuguesa e francesa. Entre franceses, ingleses e neerlandeses, as fronteiras foram definidas em 1667, mas a confirmação de 1814 – durante as guerras napoleonicas – possibilitou vantagens aos ingleses em relação aos espanhóis.

Essa região não tem história simples de contar, mas esses tratados todos inseriam ela numa política de colonização mundial. Ela tem relação com o estabelecimento de Nova Iorque, a ocupação pelos franceses da Louisiana, nos Estados Unidos e do Canadá pelos ingleses. E para finalizar, essa região tem mais algumas pitadas de história brasileira: quando da vinda da família real portuguesa para o Brasil, para se proteger das ações de Napoleão, eles foram escoltados pelos ingleses. Mas a ajuda não ficaria “gratuita”. Além da abertura dos portos as nações amigas (que para Portugal da época era praticamente só a Grã-Bretanha) em 1808, os portugueses auxiliaram com tropas para ocupar Caiene, que ficou sob “administração anglo-portuguesa” entre 1809 e 1817. As terras foram devolvidas aos franceses como um desdobramento do tratado de Viena. Apesar dos tratados, a região entre os rios Oiapoque e Araguari é reivindicada por ambos países, e alguns franceses tencionaram ocupar as terras de uma região da Guiana Portuguesa/Brasileira que eles viram como interessantes para a exploração, tentando criar uma república, que entre idas e voltas existiu (ou quase) entre 1886 e 1911.
São muitos pontos que mostram como a história se embrenha, se apresenta interconectada com tópicos inimagináveis e com muitas reviravoltas que muito romance ou série por aí… e toda essa reflexão começou com um meme… O que a curiosidade pode fazer pelo seu conhecimento hoje?
Links para aprofundar a pesquisa:
Em Português
Varia Historia (Research Gate) – O Mapa das Cortes e o Tratado de Madrid: a cartografia a serviço da diplomacia
Rev. Iberoamericana (PUCRS – PDF) – Estado Livre do Counani: Uma Questão diplomatica entre Espanha e Brasil no início do Século XXAmazonia Latitude – Incorporação e Integração da Amazônia: Perpetuação da Colonialidade
Somanlu (Academia.edu) – De vice-reino à Província: tensões regionalistas no Grão-Pará no contexto da emancipação política brasileira
Em inglês
Britannica Encyclopediae – The Guianas
World Atlas – The Portuguese Colonization of the Americas
NCESC – Geographic FAQ – Is Brazil the only Portuguese colony in South America?
David Rumsey Maps Collection – Facsimile: Part of South America by De Vaugondy
Imago Mundo (Research Gate) – A new map of the Franco-Brazilian border dispute (1900)
Em Francês
Confins (Research Gate) – La France et le Brésil de l’Oyapock, quels enjeux bilatéraux entre développement et durabilité ?
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